segunda-feira, 26 de abril de 2010

A dimensão da angústia e da existência dada segundo o pensamento existencialista de Sören Kierkegaard (1813 – 1855)




"Fiz-me abandonar
No mundo
Provando desertos

Em direções de sóis
Em crepúsculos
E
serenidade de luz.

Escavei meu rosto
No chão cotidiano
Até encontrar a caveira
De minhas verdades
E escrever no céu
Um grito liberdade"

(Hamlet).


O filosofo dinamarquês Sören Kierkegaard foi um sujeito atormentado e angustiado devido aos desgostos em sua existência. Caçula de uma família de sete filhos, ele nasceu em Copenhague. A influência do pai é decisiva quanto da melancolia do filósofo. Viúvo, ao contrair segundas núpcias, o pai de Kierkegaard vive esse segundo casamento como se fosse uma traição à sua falecida esposa. A educação daquele filho mais novo será marcada por esse sentimento de culpa, marca da educação cristã que recebeu de sua família, “assimilando um cristianismo sem comprometimento e estigmatizado pelo pecado[1]”.

Fazer a pergunta fundamental: o que devo fazer? É para o filósofo o próprio método e o momento existencial no qual o ser humano procura responder à própria existência. Parece-nos, pois, que Kierkegaard é o primeiro a se debruçar sobre a temática que circunda a existência do homem, distinguindo-a de sua essência e, sobretudo, colocando para nós, através do episódio bíblico, o paradoxo que se estabelece entre a fé e a moral[2]. Diz-se que, enquanto Karl Marx operou uma ‘reviravolta’, Kierkegaard questiona esse indivíduo frente ao sistema[3]. Ou seja, para ele, o indivíduo deveria “apresentar-se” para não se perder daquele (sistema); ora, o sistema não mais poderia explicar o indivíduo. Nesse sentido, o indivíduo não poderia ser conceitualizado. Kierkegaard utilizara-se do exemplo de Abraão – o Pai da Fé – o qual escolheu realizar a vontade de Deus, a tal ponto de sacrificar a vida de seu próprio filho e, ressalta Kierkegaard, mesmo contra o sistema[4]. Como bem sabemos, ele formulara uma concepção existencial, por assim dizer, a qual compreenderia a três fases distintas, as quais “desembocariam”, nesse sentido, no “mar da paixão”. Onde a fase ética, assemelhar-se-ia a uma ‘farsa’, a um “embuste”, pois as regras “encobririam” o ato de liberdade e, nesse sentido, através da dimensão estética, o indivíduo passaria a ‘atuar’ num contexto de comédia, ao se voltar para o prazer e para puro entretenimento. Já na dimensão religiosa, esta “trama” passa a ter características de tragédia, porque a sua “força propulsora” é a paixão[5]. A grande guinada, por assim dizer, que Kierkegaard dá, é a forma de como ‘traduzir’ essa fé de Abraão; ele enfatiza que é esse Abraão, homem de fé – a viver o paradoxo – circunscrito em um clima de angústia e não desespero. A existência, desse modo, seria marcada por uma angústia constante entre “sim” e o “não”. Ora, o indivíduo ao se decidir, rompe com um dos lados, pois como o próprio nome nos diz, “de-cindir”. Essa decisão é a paixão, é esta quem afirma o homem. Sendo assim, a existência se dá num “salto”, no próprio arriscar-se a si mesmo – na fé[6]. O conceito, tal como o “sistema”, toma a existência passada, de forma que, nenhum destes, comporta em-si a existência de fato. Como o homem está constantemente optando, a vida, desse modo, não mais pode ser entendida como um conceito fechado, mas, o próprio fluir. Remetendo-nos, pois, ao conceito grego de “alethéia”; ‘aquilo que se apresenta, mas sempre reserva algo para si’. A partir dessas relações, nos encontramos frente à problemática relação do ‘infinito’ e do ‘finito’, aonde o “eu” vem como um terceiro termo. Eis, então, a chave de todo o pensamento existencial de Kierkegaard: a escolha. Fora ele quem brilhantemente colocara o conceito de escolha enquanto autenticidade da existência humana. Ou seja, as escolhas comprometem a própria vida – isto não fora, pelo menos no plano filosófico, nada inovador, pois, Agostinho percebera o homem, só é homem enquanto um ser de vontade e de escolhas. O ser humano mantém-se entre a dúvida e a fé, onde só se passa esse estágio num “salto”, o salto existencial de escolher e acolher algo como sendo essencial e verdadeiro à vida. Esta é a resposta que a fé nos oferece. A existência é e permanecerá sempre falta, uma “ascensão inacabada e inabalável[7]. Não cessamos de aspirar a uma plenitude enquanto vagamos no meio de uma incerteza infinita; é com a própria incerteza que nos demos contentar como verdade. O sentido autêntico da existência é viver-para-a-morte, pois o homem é um ser angustiado e voltado para a morte. Essa experiência não é um dado intelectivo, e sim, comprova-se no dado existencial, que é a angústia. Essa angústia, dado existencial que impulsiona o homem a compreender o sentido de viver, pode ser compreendida como sendo onipresente. Ela envolve o ser humano como um todo. Todos os socorros e todas as proteções são ineficazes para debelá-la. O homem sente-se completamente perdido e desolado. Só em Deus ele tem a resposta para o seu desterro. Não tendo coisa alguma no e do mundo como causa, a angústia teria sua fonte no mundo como um todo e em estado puro. O mundo surge diante do homem, aniquilando todas as coisas particulares que o rodeiam e, portanto, apontando para o nada. Este é o momento em que a fé dá ao humano a força e o impulso do salto em direção ao inesgotável mistério da confiança em Deus e da esperança nele.



[1] Huisman, Denis. História do Existencialismo. Bauru, São Paulo: EDUSC, 2001, p. 38

[2] Moral esta, que passa a ser percebida enquanto “razão-de-ser”

[3] Sistema, enquanto “unidade”, “fechamento”, “hermeticidade”; isto é, aquilo que somente volta-se ao passado, sendo este, pronto, acabado. Pressupondo, assim, uma verdade dada.

[4] Mesmo contra a moralidade social, fazendo com que percebamos que Abraão estaria disposto a superar o sistema.

[5] Paixão em seu sentido primeiro; “a paixão da fé”. Isso nos faz até cair num chavão: “onde há paixão, há angústia, há dor”.

[6] Fé, aqui entendida como ‘um mergulhar no absoluto o qual não pode ser conceitualizado’.

[7] Huisman, 2001, p. 43