quinta-feira, 12 de março de 2009

Viva a Vida!



A Igreja foi Durante Séculos Favorável ao Aborto?
(D. ESTEVÃO TAVARES BETTENCOURT, OSB)



A Igreja sempre foi contrária ao aborto, ou seja, ao morticínio de uma criança contida no seio materno. Já no século I se encontra um testemunho deste repúdio na Didaqué. Os Concílios regionais, desde o de Elvira (início do século IV), foram impondo penas severas aos réus de aborto. 0 Direito Canônico, hoje vigente, fazendo eco às diretrizes do passado, prevê a excomunhão latae sententiae para quem provoque o aborto (seguindo‑se o efeito).

Todavia até época recente os cientistas hesitaram sobre o momento em que tem início a vida humana: seria imediatamente após a concepção ou após a fecundação do óvulo? Ou haveria, conforme pensava Aristóteles, um intervalo (de 40 ou 80 dias) entre a concepção e a animação do feto? A hesitação da ciência, bem compreensível, dada a falta de meios de pesquisa, fez que vários teólogos católicos julgassem com menos severidade a eliminação do feto antes do 400 dia (no caso dos indivíduos masculinos) ou antes do 809 dia (no caso dos indivíduos femininos). Note-se bem: sempre foi condenada a ocisão de uma criança; a hesitação versava apenas sobre a questão de saber se já existe verdadeiro ser humano desde o momento da concepção.

Num debate na televisão sobre o aborto, foi considerada a posição da Igreja em termos que deixaram interrogações na mente do público. Entre outras coisas, foi dito que a Igreja não tem autoridade para impugnar o aborto, pois que ela o permitiu desde o século IV até o século XIX. A afirmação foi realmente surpreendente e exige esclarecimentos e retificações. Encararemos, a seguir, o assunto, tratando primeiramente dos pronunciamentos oficiais da Igreja sobre o aborto através dos séculos; após o que voltar‑nos‑emos para a questão do início da vida humana, que deixou dúvidas em escritores de todos os séculos até época recente.

1. 1. Os pronunciamentos da Igreja

1. Desde o século I manifesta‑se na Igreja a consciência de que o aborto é pecaminoso. Assim, por exemplo, reza a Didaqué, o primeiro Catecismo cristão, datado de 90‑100:
''Não matarás, não cometerás adultério... Não matarás criança por aborto nem criança já nascida" (2,2). 0caminho da morte é... dos assassinos de crianças‑ (5,2).

Na segunda metade do século II, o autor da Epístola a Diogneto observa: Os cristãos casam‑se como todos os homens,‑ como todos, procriam, mas não rejeitam os filhos" (V 6).

0 autor da Epístola atribuída a S. Barnabé no século II e depois Tertuliano (t 220 aproximadamente), S. Gregório de Nissa (t após 394), São Basílio Magno (t 379) fizeram eco aos escritores precedentes.

2. 2. A legislação da Igreja oficializou esse modo de pensar, estipulando sanções para o crime do aborto. Assim o Concílio de Ancira (hoje Ancara) na Ásia Menor em 314, cánon 20, menciona uma norma que os conciliares diziam ser antiga e segundo a qual as mulheres culpadas de aborto ficavam excluídas das assembléias da Igreja até a morte; o Concílio atenuou o rigor dessa penalidade, reduzindo a para dez anos:

As mulheres que fornicam e depois matam os seus filhos ou que procedem de tal modo que eliminem o fruto de seu útero, segundo uma lei antiga são afastadas da Igreja até o fim da sua vida. Todavia num trato mais humano determinamos que lhes sejam impostos dez anos de penitência segundo as etapas habituais" (Hardouín, Acta Conciliorum, Paris 1715, t. 1, col. 279) ["Demulieribus quae fornicantur et partus suos necant, vel quae agunt secum ut utero conceptos excutiant, antíqua quídem definitio usque ad exítum vitão ws ab Ecclesia removet. Humaníus autem nunc definimus ut eis decem annorum tempus secundum praetixos gradus paenítentíae largíamur].

Outros Concílios repetiram a condenação do aborto: o de Elvira (Espanha) em 313 aproximadamente, cânon 63; o de Lerida, em 524, cânon 2; o de Trullos ou Constantinopla, em 629", cânon 91; o de Worms em 869, cânon 35...

Em 29/10/1588, o Papa Sixto V publicou a Bula Effraenatam: referindo‑se aos Concílios antigos, especialmente aos de Lerida e Constantinopla, condenou peremptoriamente qualquer tipo de abordo e impôs severas penas a quem o cometesse, penas que só poderiam ser absolvidas pela Santa Sé. Além disto, a Bula não distingue entre feto não animado e feto animado por alma intelectiva, distinção esta de que falaremos às pp. 234‑236 deste artigo e que na época parecia muito importante.

Tal Bula era rigorosa demais para poder ser observada, principalmente pelo fato de reservar à Santa Sé a absolvição das penas infligidas aos réus de aborto. Por isto foi substituída poucos anos depois pela Bula Sedes Apostólica de Gregório XIV, datada de 31/05/1591; este documento distingue entre feto animado e feto não animado por alma humana: o aborto de feto animado ou verdadeiramente humano seria punido com a excomunhão para os culpados, mas sem reserva da absolvição à Santa Sé; quanto ao aborto de feto não animado ou não humano, ficaria a questão como estava antes da Bula de Sixto (seria passivo de sanção menos severa do que o aborto de feto animado).

Como se vê, a questão da animação mediata ou imediata era ardente na época. Diante das posições extremadas que alguns autores professavam, o Papa Inocêncio XI condenou em 02/03/1679, corno escandalosas e na prática perniciosas, as seguintes sentenças:

34. É lícito efetuar o aborto antes da animação para impedir que uma jovem grávida seja morta ou desonrada.

35. Parece provável que todo feto carece de alma racional enquanto está no seio materno,‑ só é dotado de tal alma quando é dado à luz, Em conseqüência, deve‑se dizer que nenhum aborto implica homicídio" (DenzingerSchõnmetzer, Enquirídion de Símbolos e Definições nº 2134s),

Como se vê, o Papa não quis abonar a tese do aborto sob pretexto de que não afeta um ser humano propriamente dito. Embora não se soubesse com certeza no século XVI I quando começa a vida humana, Inocêncio XI não se prevaleceu desta incerteza para legitimar a eliminação do feto contido no seio materno.
No século XIX o Papa Pio IX renovou a condenação do aborto, sem distinguir animação mediata ou imediata:

“Declaramos estar sujeitos a excomunhão latae sententiae (anexa diretamente ao crime), reservada aos Bispos ou Ordinários, os que praticam o aborto com a eliminação do concepto” (Bula Apostolicas Sedis de 121101 1869).

Esta sentença categórica persistiu na Igreja até o Código de Direito Canônico atual, que prevê a excomunhão para o delito:

"Cânon 1398 - Quem provoca o aborto, seguindo‑se o efeito, incorre em excomunhão latae sententiae".

Vê‑se, pois, que a Igreja desde os seus primórdios se manifestou contrária ao morticínio de uma criança contida no seio materno. Existia, porém, para os teólogos a grave questão de saber quando começa a vida humana; a falta de conhecimentos genéticos adequados levava alguns a crer que, em determinadas circunstâncias, não havia verdadeira vida humana no seio materno. É o que passamos a examinar mais detidamente.

2. 2. Animação mediata ou imediata?

Os seres vivos são compostos de um corpo organizado e um princípio vital (chamado anima, em latim). Animação, portanto, é o ato de se unirem o princípio vital (anima) e o corpo organizado. No homem, a animação ocorre quando a alma (anima) é criada por Deus e infundida nos elementos materiais orgânicos, aptos a exercerem as funções da vida humana (que é vegetativa, sensitiva e intelectiva). Pergunta‑se, pois, quando se dá a animação: logo por ocasião da fecundação do óvulo pelo espermatozóide? Tem‑se então a animação imediata... Ou a certo intervalo após a fecundação? Tem‑se assim a animação mediata.

Vejamos como os pensadores responderam à questão.
Na antiguidade pré‑cristã somente o filósofo grego Aristóteles (t 322 a.C.) tratou do assunto. 0 seu raciocínio não é claro, mas parece defender a animação mediata: o embrião humano teria primeiramente um princípio vital meramente vegetativo; depois seria animado por um princípio vital vegetativo e sensitivo, e só posteriormente por um princípio (anima) vegetativo, sensitivo e intelectivo ou por uma alma humana propriamente dita.

Passemos agora aos pensadores cristãos, distinguindo gregos e latinos.


2.1. Os escritores gregos

A maioria destes era partidária da animação imediata. Foi principalmente S. Gregório de Nissa (t após 394) quem marcou a tradição grega. Rejeitava a teoria da preexistência seja da alma, seja do corpo, e afirmava a origem simultânea de um e outro elemento; desde o primeiro instante da existência do embrião, a alma encontra‑se nele com todas as suas potencial idades, que se vão manifestando à medida que o corpo se desenvolve.

São Basílio Magno (t 379), irmão de S. Gregório de Nissa, adotou o pensamento deste. Por isto considerava assassinos os que provocam o aborto de um feto. São Máximo Confessor (t 662) abraçou a mesma tese, fundamentando‑se do seguinte modo: se o corpo existe antes de ter uma alma, é um corpo morto, pois todo vivente possui uma alma. Se preexiste à alma racional, tendo uma alma meramente vegetativa ou sensitiva, segue‑se que o ser humano gera uma planta ou um animal irracional ‑ o que é impossível, pois toda planta provém de outra planta e todo animal irracional nasce de outro animal irracional, e não do homem.

Entre os defensores da animação mediata, está Teodoreto de Ciro (t 466 aproximadamente). Apela para o livro do Gênesis, onde lhe parece que Moisés propõe a formação do corpo humano primeiramente e só depois a infusão da alma humana (cf. Gp 2,7). É certo, porém, que entre os gregos prevaleceu a tese da animação imediata.

2.2 2.2 Os escritores latinos

Entre estes destaca‑se Tertuliano (t 220 aproximadamente). Era favorável à animação imediata, argumentando, porém, a partir de um princípio que lhe valeu a réplica dos pósteros. Com efeito; Tertuliano defendia a animação imediata, julgando que as almas dos genitores desprendiam de si uma "semente (tradux) da qual se originaria a alma da prole; por conseguinte, juntamente com os óvulos e os espermatozóides, os genitores transmitiriam sementes de alma humana. Esta doutrina, chamada traducianismo, não preservava devidamente a espiritualidade da alma, mas reduzia a psyché humana à material idade. Por isto os escritores latinos, desejosos de ressalvar a espiritualidade da alma, puseram‑se a combater o traducianismo e, comeste, a doutrina da animação imediata. Afirmavam: a concepção é obra dos genitores, ,mas a animação é obra direta de Deus que cria e infunde a alma humana. Para bem distinguir uma da outra, distanciaram‑nas também cronologicamente: a animação se daria tempos após a concepção da criança.

0 autor do livro De spiritu et anima falsamente atribuído a S. Agostinho (t 430) afirmava que o corpo vive a vida vegetativa e cresce no seio materno antes de receber a alma intelectiva ou humana. Outro autor anônimo, que foi confundido com S. Agostinho, comparava a formação de cada ser humano à formação de Adão: Deus só daria a alma intelectiva ao corpo humano depois que este estivesse formado, como aconteceu no caso de Adão (Quaestiones ex Vetere Testamento c. XIII). Cassiodoro (t 580) raciocinava do mesmo modo e acrescentava o testemunho dos médicos que estabeleciam a animação do corpo humano no quadragésimo dia após a concepção (De anima c. VI 1). Cassiodoro, porém, observava que, em assuntos tão obscuros, seria melhor confessar a própria ignorância do que falar com temeridade arriscada.

Na Alta Idade Média a sentença da animação mediata foi reforçada pela difusão das obras de Aristóteles a partir do século XIII. S. Tomás de Aquino (t 1274) a adotou com outros pensadores da época, estipulando a infusão da alma humana ou racional no 409 dia para os indivíduos masculinos e no 80º dia para os indivíduos femininos. Houve também aqueles que, seguindo uma insinuação do médico grego Hipócrates, estabeleciam o 30º dia para o sexo masculino e o 40º para o sexo feminino.

A partir do século XIII, algumas vozes, principalmente dentre os médicos, começaram a se fazer ouvir contra a hipótese dos pensadores medievais, de modo que aos poucos foi predominando a sentença da animação imediata. A Genética contemporânea, com seus apurados estudos, só contribui para confirmar definitivamente esta noção científica.

Os defensores da animação mediata apelaram para três textos bíblicos, cujo alcance nos compete agora considerar.


3.Três textos bíblicos

Vêm ao caso Ex 21,22s; Lv 12,2‑5 e Jó 10,912.

a. a. O texto de Ex 21,22s

Segundo a tradução grega dos LXX, este texto supõe que um homem imprudente dê um golpe numa mulher grávida e provoque o aborto. Se a mulher morre ou se o fruto de seu ventre estava formado, a punição para o delinqüente será a morte ("morte por morte‑). Se, porém, a mulher não morre e seu fruto não estava formado, o réu pagará apenas uma multa. Este texto parece supor que existe feto formado, plenamente humano, e feto não formado, não plenamente humano. S. Agostinho e outros autores latinos (que usavam a Bíblia traduzida do grego para o latim) e gregos se apoiaram em tais versículos bíblicos para propugnar a animação mediata cf. S. Agostinho, In Hoptatouchum, II c. LXXX,

Em resposta, deve‑se observar que a tradução grega citada não corresponde ao texto original hebraico, nem às versões latina (da Vulgata), samaritana, síria, árabe. Eis o mais verossímil teor do texto segundo o original hebraico:

“Se homens brigarem e ferirem mulher grávida, e forem causa de aborto sem maior dano, o culpado será obrigado a indenizar o que lhe exigir o marido da mulher, e pagará o que os árbitros determinarem. Mas, se houver dano grave, então dará vida por vida".

Esta lei quer dizer o seguinte: se o delinqüente provocar expulsão do feto, mas sem morte nem da mãe nem da criança, a punirão será uma multa. Se, porém, houver morte ou da mãe ou da criança, o réu será condenado à morte. Como se vê, não há aí distinção entre feto formado e feto não formado.

0 próprio texto dos LXX, ao falar de “feto formado" e "feto não formado”, não tem necessariamente em vista os períodos de pré‑animação e de animação; pode apenas referir‑se à fase em que o embrião ainda é quase indiferenciado e àquela em que já pode ser identificado como ser humano. Como quer que seja, só pode ser utilizado, no caso, o texto hebraico como instrumento de argumentação, e não o texto grego

3.2 Os dizeres de Lv 12,2‑5

A Lei de Moisés prescreve quarenta dias de purificação às mulheres que tenham dado à luz um menino, e oitenta dias no caso de terem gerado uma menina. ‑ Ora esta lei nada tem que ver com períodos de formação do feto no seio materno; mas foi por numerosos autores antigos considerada como símbolo de fases de animação. Esta consideração, porém, nada prova, pois um símbolo não é demonstração nem prova.

b. b. As palavras de Jó 10,912

Eis os dizeres de Jó:
“Lembra‑te de que me fizeste de barro, e agora me farás voltar ao pó? Não me derramaste como leite e me coalhaste como queijo? De pele e carne me revestiste, de ossos e de nervos me teceste. Deste a vida e o amor, e tua solicitude me guardou”.

Neste texto o autor sagrado menciona primeiramente a formação do corpo (pele, carne, ossos, nervos) e, depois, a entrega da vida como dom da misericórdia divina. Por conseguinte, a alma humana teria origem posterior ao corpo. Esta conclusão parece corroborada pelo paralelismo que o texto tece entre a formação do corpo de Jó e a do corpo de Adão, ambas partindo do barro, que só depois de plasmado recebeu a alma humana.

Em resposta, notamos que o autor sagrado quer apenas referir a ordem que vai do menos importante (corpo) ao mais importante (princípio vital); não há aí sucessão cronológica de fases de formação do ser humano. De resto, sabemos que o autor sagrado não tencionava oferecer uma descrição científica dos fenômenos que ocorrem na origem de uma criatura, de modo que é despropositado querer deduzir de tais dizeres uma sentença de Genética ou de Embriologia. Adão e Jó são comparados entre si não sob o aspecto geneticista ou biológico, mas, sim, na medida em que ambos são objeto da Providência Divina.



4.Conclusão:

Como se deduz das declarações dos Concílios e dos Papas atrás citados, a Igreja sempre foi contrária à ocisão de uma criança no seio materno. Acontece, porém, que, não sabendo quando o feto se torna criança (ser humano) propriamente dita, os doutores antigos distinguiam a eliminação do feto antes do 409 ou 80? dia e o aborto propriamente dito. Não chegaram a legitimar ou aprovar aquela, mas julgaram que não podia ser considerada com tanto rigor como o aborto propriamente dito; veja‑se a intervenção de Gregório XIV em 1591 (p. 233 deste fascículo). Na verdade, a extração de um elemento não humano não pode ser tida como aborto.

Os antigos estavam, pois, condicionados pelo seu insuficiente conhecimento de Genética, mas por certo não toleravam o morticínio de uma criança, por mais incômoda que parecesse aos pais. Hoje em dia tal condicionamento desapareceu, de modo que se pode com mais nitidez e firmeza repudiar o aborto desde a concepção no seio materno, qualquer que seja a fase de evolução do feto.